Thursday, April 1, 2010

O cão e o menino

O ônibus parou lentamente, levantando uma nuvem de poeira em frente à pequena propriedade, na área rural da cidade. Era um terreno de mil metros quadrados, com uma casa construída próximo à cerca. De resto, árvores frutíferas e hortas preenchiam o espaço. A porta do veículo abriu-se e o garoto desceu os degraus da entrada eufórico. Cabeças jovens emergiram de dentro do ônibus através das sujas janelas, emitindo gritinhos e risadas. Algumas mãos acenaram um "tchau" tímido. Porém, o garoto não percebeu nenhuma dessas ações. Enquanto a porta do coletivo se fechava e o veículo partia pela rua de terra batida, o garoto jogou a mochila nas costas e disparou, apressado, em direção à chácara onde morava.

Tirou a corrente que prendia o portão e entrou, apressado. Passou pela garagem e entrou, num salto, na cozinha. Sua mãe estava ao fogão, terminando de preparar o almoço. "Cadê ele?", perguntou o garoto, enquanto tentava recuperar o ar que lhe faltava aos pulmões. "Lá fora, amarrado", respondeu a mulher, indicando a direção com a cabeça. O menino jogou a mochila sobre a mesa da cozinha, deu meia volta e saiu para o quintal. Olhou ao redor e o viu, dormindo, sob uma mangueira, aproveitando a sombra que a árvore disponibilizava naquele dia de calor. Uma corda fina prendia-o no tronco da árvore.

O pastor alemão ainda era um filhote, mas prometia tornar-se um espécime de qualidade da raça. Tinha pastas largas e grandes, um pelo dourado e cedoso e um tamanho maior do que o normal para a idade. O garoto aproximou-se do cão, eufórico e animado. Mas essa sensação durou pouco, muito pouco. Durou até a hora em que ele aproximou-se demais do animal, acordando-o do seu sono leve e fazendo com ele ele avançasse, com os dentes à mostra e um olhar raivoso, para cima do menino. Este, por sua vez, recuou, até um ponto onde o cachorro, limitado, pelo pequeno pedaço de corda preso à sua coleira, não o alcançasse.

Os dois ficaram ali, se encarando por um certo tempo. Olhos fixados, um no outro. O menino, com a boca aberta, assustado; o cão, com os dentes à mostra, com o pelo eriçado, latia, sem perder o fôlego, para o garoto. Toda a animação presente no garoto evaporou-se como água nesse momento. Por semanas os pais haviam prometido trazer para casa um cachorro. Ele, em sua cabeça, já se via brincando toda a tarde com o novo amigo. Até tinha pensado em chamar os coleguinhas. "Ei, vejam, é o meu cachorro". Mas ali, diante daqueles dentes afiados e latidos intimidadores, esses pensamentos escapavam de sua mente como areia por entre os dedos.

Naquele dia, o garoto não sabia que aquele cachorro, assustador, iria ser inesquecível em sua vida. Os dias foram passando. Os dois foram crescendo, o pastor mais, o garoto, menos. E a ideia que o menino tinha do animal foi mudando. Ele tinha certeza de que, todos aqueles sonhos de ter um companheiro de quatro patas em casa cairiam no esquecimento, tamanha a fúria do animal quando ambos se conheceram. Porém, conforme crescia, e ele crescia muito, o cão, ao invés de ficar ainda mais raivoso, foi se acalmando. Se antes ele estraçalhava qualquer felino que se aproximasse demais dele, agora, ele servia de travesseiro para os pequeninos "amigos".

Com o garoto também foi assim. A convivência, diária, mudou a percepção de ambos. Meses depois, já adulto, o cachorro era imenso. Mas mantinha suas características. As patas largas e grandes, o pelo dourado e macio e os dentes afiados. Mas ele já não avançava sobre o garoto, visando, quem sabe, uma refeição. Não. Agora, na falta de um cavalo, o menino cavalgava o cão, que disparava pela chácara, derrubando o pequeno na grama. Ou então, se atirava no mato denso em busca de um graveto jogado pelo garoto. Às vezes, ao invés de um pedaço de madeira, voltava com uma galinha morta na boca, com o rabo chocalhando, todo feliz. O garoto havia conseguido o cão que tanto sonhava.

Mas os anos passaram. E ai, quem cresceu foi o garoto. Já não podia mais montar o cachorro, que já dava sinais de cansaço. Já era quase um idoso. As brincadeiras com o menino diminuíram ao passo que as amizades "humanas" dele aumentavam. Até que a vida em meio ao mato deu lugar à vida corrida da cidade. Caminhão cheio com a mudança, o cão nunca mais veria as árvores onde ficou preso quando filhote. Também nunca mais mataria as galinhas do vizinho, que teimavam em ciscar o terreno de seu dono.

Na cidade, foi-lhe reservado um pequeno espaço de terra batida. Ali, poucas pessoas lhe davam atenção. O garoto crescera, e mal ficava em casa. Preferia se divertir na rua com os novos amigos, enquecendo-se do antigo, ali, preso, atrás do portão. Talvez a tristeza tenha ajudado na disseminação da doença que acabou por atingi-lo. A falta que o mato lhe fez prejudicou-lhe as patas, infeccionadas por causa do cimento. E dá-lhe remédios. Aos poucos, ele já não conseguia mais andar. Arrastava-se pela casa, mas o cansaço batia logo, devido ao porte grande e à idade avançada.

Assim, recebia a atenção da família, mas não porque os divertia, como antes, mas porque estava no fim de sua vida. Esperou até que todos estivessem reunidos para colocar a cabeça sobre as patas e descansar, eternamente. O garoto chorou. Poucas vezes havia chorado, mas chorou ao perder o velho amigo, o qual não havia dado a devida atenção nos últimos anos. Lá, no dia em que ambos se conheceram, ele não podia imaginar que um simples cão poderia lhe marcar tanto. Hoje, ele sabe o quanto o amigo de patas largas e pelo dourado lhe faz falta.

2 comments:

Bruna Azevedo said...

Lindíssimo texto Dan... Como já disse anteriormente, sou muito fã de seus textos.
Pude ver claramente toda as cenas.

Muito lindo mesmo!!!

Parabéns!!

Anonymous said...

Como disse Bruna, consegui visualizar todas as cenas e me emocionei com o final!
Parabéns, mesmo.
Abraços,
Pamela.

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